Andamos todos entretidos nas nossas vidas, tratando do que temos de tratar e discutindo outras coisas, umas importantes, outras não tanto, e não queremos entender ou rendermo-nos à evidência de que, num mundo à parte, um escol de dirigentes políticos endoidecidos se prepara para nos servir uma guerra mundial ao virar da esquina. Uma guerra cujas razões ou inevitabilidade não enxergamos e cujas consequências nem sequer conseguimos imaginar em todo o seu horror.
Não, em vida da minha geração o mundo nunca esteve tão perto da guerra. Não o mundo cuja forma habitual de vida é a guerra — em África, no Médio Oriente ou em disputas religiosas ou tribais por esses tristes trópicos. Mas sim o mundo inteiro, a Humanidade como a conhecemos. Em 1979, a União Soviética, de Brejnev, e o seu sinistro séquito de personagens resolveram instalar mísseis de longo alcance nos limites dos países da Cortina de Ferro, os SS-20, apontados às principais capitais europeias. A NATO convocou uma cimeira de urgência para o seu quartel-general em Bruxelas e eu estive lá a cobrir a reunião para a televisão portuguesa. Foi a célebre reunião em que milhares de manifestantes, vindos de vários pontos da Europa, gritavam “better red than death”, instando os dirigentes da Aliança a não responderem à ameaça soviética. Eu, porém, torcia intimamente para que respondessem, e foi o que fizeram: a instalação recíproca dos Cruises e Pershings II americanos apontados ao Leste não só fez recuar a ameaça iminente como, a prazo e em consequência, conduziria à implosão da URSS. Gosto de recordar este episódio porque há quem se esforce para nos convencer de que agora estamos exactamente na mesma situação. Mas é falso: primeiro, já não existe a União Soviética, mas sim a Rússia — que, mesmo que alimente veleidades imperiais, não se move por ideologia, mas por interesse nacional, o que é mais racional. Em segundo lugar, a NATO tem hoje 32 e não 12 membros e deixou há muito de ser uma organização militar estritamente defensiva para passar a ser o longo braço armado do cerco à Rússia. E, finalmente, em 1979 os russos tinham-nos na mira de novos mísseis nucleares de longo alcance, enquanto hoje o que leva o primeiro-ministro polaco a declarar que estamos à beira da Terceira Guerra Mundial foram 19 drones, de um total de 450, que, num ataque à zona ocidental da Ucrânia, ultrapassaram a fronteira e caíram no lado polaco, danificando um telhado de uma casa e um tejadilho de um carro. Um “teste”, uma “provocação” ou, melhor ainda, um “ataque”, como logo o classificaram todos os dirigentes nacionais da NATO, o seu secretário-geral e a imprensa que desde a invasão da Ucrânia os segue acriticamente, e que é quase toda. Obviamente, a explicação de um mero erro de cálculo não podia convencer quem se esforça para nos convencer todos os dias de que estamos à beira da guerra e que, se não nos endividarmos perante as empresas de armamento americanas, Putin passará o próximo Verão, não na Crimeia, como Tchékhov e tantos outros russos célebres, mas na Côte d’Azur ou na Comporta.
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