14 de fevereiro de 2023

Fala do Homem nascido

Venho da terra assombrada,

do ventre de minha mãe;

não pretendo roubar nada

nem fazer mal a ninguém.


Só quero o que me é devido

por me trazerem aqui,

que eu nem sequer fui ouvido

no acto de que nasci.


Trago boca para comer

e olhos para desejar.

Com licença, quero passar,

tenho pressa de viver.

Com licença! Com licença!

Que a vida é água a correr.

Venho do fundo do tempo;

não tenho tempo a perder.


Minha barca aparelhada

solta o pano rumo ao norte;

meu desejo é passaporte

para a fronteira fechada.

Não há ventos que não prestem

nem marés que não convenham,

nem forças que me molestem,

correntes que me detenham.


Quero eu e a Natureza,

que a Natureza sou eu,

e as forças da Natureza

nunca ninguém as venceu.


Com licença! Com licença!

Que a barca se fez ao mar.

Não há poder que me vença.

Mesmo morto hei-de passar.

Com licença! Com licença!

Com rumo à estrela polar.


António Gedeão, in ‘Teatro do Mundo

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