6 de junho de 2023

Ratos aprisionados ?

 


SÉRGIO SOUSA PINTO

Ratos num jarro

Quando contemplamos, com luso azedume, o desempenho insatisfatório da Pátria espelhado nos nossos indicadores de desenvolvimento e bem-estar, lançamos mão de uma espécie de pronto-a-vestir do pensamento e atribuímos os nossos males à misteriosa mediocridade dos políticos que por aqui medram ou a um qualquer aspeto especialmente deplorado do sistema, por regra os partidos, colmeias de políticos, ou o sistema eleitoral, que tem obstaculizado a emergência do génio.

À medida que a geração mais qualificada de sempre vai fazendo o seu tirocínio nestas altas questões, o século XIX começa a despontar na conversa nacional como matriz política das nossas misérias. As imperfeições do regime, em que já boiava o senhor duque de Loulé, constituem explicação para o advento, afinal inevitável, do dr. António Costa.

O dr. Costa, dispensando, por definição, auxílio, falemos do tempo de Loulé, o tempo do muito incompreendido e maltratado liberalismo português.

O dr. Johnson observou que quem está farto de Londres, está farto da vida. Ora, o mesmo poderia o ilustre doutor decretar a respeito da imprensa portuguesa do século XIX. Não há leitura mais animada. Nela se atacam, com a maior pugnacidade e destrambelhamento nacionais, o rei, a família real, os ministros, os deputados, os caciques, os padres, as freiras, a Igreja e a religião. Pede-se desculpa à grossa multidão que, sendo igualmente digna de menção, aqui não coube. Poucos países terão alguma vez experimentado a liberdade do liberalismo português (passe a redundância). Até ao final do século, toda a gente de relevo era genuinamente liberal, a começar pela família real, a primeira das famílias burguesas do país.

Os detratores do nosso século XIX assanham-se na denúncia da corrupção do sistema político, as eleições negociadas e fabricadas, as fornadas de pares, os padres e regedores a conduzir a populaça às urnas, os panelões de carne guisada para espevitar o sentido cívico. Tudo isso é verdade. Sucede que não havia outra forma de fazer funcionar um regime “civilizado”, em linha com a razão e com o espírito do século, num país atrasado, pobre e analfabeto. O liberalismo português foi o que podia aspirar a ser, e foi muito. A alternativa conhecida eram as autocracias reais da Europa Central, mais ou menos absolutistas.

O uso e abuso do precedente oitocentista para desqualificar a democracia que temos — sua sucessora — é muito perigoso. Foi usado com êxito na primeira metade do século XX e gerou como alternativa a antítese do século da liberdade. O descontentamento com o regime de 1976 assenta largamente numa ilusão: a ilusão de uma perfeição política, alcançável em democracia pelo milagre do voto. Se não se atingiu esse nirvana, a culpa é forçosamente dos políticos, dos partidos ou do sistema. Agora, com uma pá, buscam-se os alicerces do próprio edifício da liberdade.

Em Portugal, a conversa nacio­nal não se eleva acima de uma mastigação de lugares-comuns, preconceitos, simplificações e tonterias variadas, herdadas de pai para filho ou transmitidas de professor para aluno.

Parecemos ratos aprisionados num jarro, e todo o pensamento possível tem o formato do jarro.

Fonte: Jornal Expresso 

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