4 de novembro de 2024

Crónica da tragédia

Recortes de Imprensa 

















Os carros podem pesar 1500 kg, e até mais, e as primeiras imagens que vemos da tragédia parecem filmar o dilúvio, de cima, com uma câmara simples de telemóvel, mostrando precisamente essas coisas que pesam 1500 quilos a serem empurradas como se fossem elementos sem peso algum, uns frágeis pedacitos de matéria. Nas imagens, vemos que os carros são arrastados pelas águas a grande velocidade, são barcos aloucados que já não sabem de onde vêm e o que são. Parecem mesmo pedaços de madeira sem juízo, sem volante algum, sem pedais; os pesados carros transformados em coisas facilmente arrastáveis. Esses carros que são, na vida comum dos dias, sem a impressionante força das chuvas, o que nos leva de um ponto a outro, aquilo que tem na sua estrutura direção e sentido, velocidade e paragem, os carros, então, de súbito, nas primeiras imagens que recebemos da tragédia de Valência, estão pura matéria passiva que se deixa empurrar num caudal castanho de um rio formado à força no meio das ruas que apenas há uma hora eram ruas para tráfego de quatro rodas, tráfego que parava nos sinais vermelhos dos semáforos. Agora, todos os postes, quer de semáforos quer de eletricidade, tornaram-se apenas obstáculos contra os quais os carros vão batendo no meio do violento caudal de água que, se arrasta carros a grande velocidade, mais facilmente e tragicamente empurra os humanos, que são tão leves, e os faz perder o pé, depois a força e a vida. O número de mortos aumenta e algo nestes dias nos lembra um dilúvio moderno, localizado, mas com essa aterradora potência para ficar na memória daquele espaço, daquelas terras. Ninguém vai esquecer isto. Nem os mais velhos, nem os mais novos, nem os que ainda não nasceram. Quem ali vive, quem ali sobreviveu, terá uma marca de desespero e ansiedade que nenhum século de bom tempo será capaz de eliminar.

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Gonçalo M. Tavares 

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