7 de novembro de 2024

Médico e Poeta, J. Sousa Braga

 


3 AM

Mãe

Não consigo adormecer

Já experimentei tudo. Até contar carneirinhos

Não consigo adormecer

Nem chorar

(Que maior tragédia poderá acontecer a um homem do que a de já não ser

capaz de chorar?)


Mãe

Sabias que o cordão umbilical pode funcionar

como uma corda num enforcamento?

— tenho aprendido coisas bem singulares neste

          convívio com os deuses —

Um dia destes regressarei a Tebas para ser coroado

Reservei hoje mesmo um lugar num avião das Linhas Aéreas Gregas

Gostaria de brindar contigo com uma taça de orvalho

antes de partir


Mãe

Detesto coberturas de açúcar mesmo que levem limão

Isto é tão certo como o é tu não me compreenderes

Estava a sonhar que estava a sonhar e assim por aí adiante até ao infinito. Depois

    acordei. E fui descendo vertiginosamente de sonho para sonho

Ainda não parei de acordar. E de sonhar


Mãe

Tenho uma surpresa para ti

um caramanchão para que te possas sentar todas as tardes a catar estrelas

    na minha cabeça


Mãe

Abriu um concurso para preencher uma vaga de

    ascensorista no Paraíso e eu concorri

Achas que tenho alguma hipótese de ser admitido?

— tenho a boca cheia de formigas —


Mãe

um dia hei-de subir contigo

degrau

a degrau

o arco-íris 


Jorge de Sousa Braga, in 'Antologia Poética'


*********


Incubadora

Era tão pequena a mão que

nem o seu dedo mendinho


conseguia agarrar. Pesava

quinhentos gramas e respirava


sem ajuda do ventilador

O coração da sua mãe quase


que não batia com receio de

que ele sufocasse sob o peso

do seu amor


Jorge de Sousa Braga, in 'A Ferida Aberta'

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