
Eugénio de Andrade
Em Abril chegam os gatos:
à frente o mais antigo, 
eu tinha dez anos ou nem isso, 
um pequeno tigre 
que nunca se habituou às areias do caixote, 
mas foi quem primeiro 
me tomou o coração de assalto. 
Veio depois, já em Coimbra, 
uma gata que não parava em casa: 
fornicava e paria no pinhal, 
não lhe tive afeição que durasse, 
nem ela a merecia, de tão puta. 
Só muitos anos depois entrou em casa, 
para ser senhora dela, 
o pequeno persa azul. 
A beleza vira-nos a alma 
do avesso e vai-se embora. 
Por isso, quem me lambe a ferida aberta
que me deixou a sua morte 
é agora uma gatita rafeira e negra 
com três ou quatro borradelas de cal na barriga. 
É ao sol dos seus olhos 
que talvez aqueça as mãos, 
e partilhe a leitura do Público ao domingo.

 
 
 
2 comentários:
...
a palavra escrita por quem sabe, até parece fácil escrever.
na verdade é tão bom de ler.
(gosto de te saber revigorada)
...
"saborear" é fácil mesmo.
Escrever, gerar, criar, parir palavras e textos é que não é fácil certamente.
É um pouco como os cozinhados - podem ser saboreados por todos, divinamente confeccionados, só por alguns.
Arte, só tem quem tem!
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