A minha mãe tem noventa e três anos, está cega, está surda, é um farrapinho que o menor sopro leva e, no entanto, lembra-se do peso com que os seis filhos nasceram, das peripécias de cada parto, dos primeiros dentes.
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Um beijo como deve ser, se fazes favor e lá lhe pus, na bochecha, um beijo como deve ser. E tinha razão porque me limitara a roçar-lhe a testa com a boca. Várias vezes a ouvi perguntar aos meus irmãos
Não sabes dar um beijo como deve ser?
De pé, minúscula, mirando as sombras que agora somos para ela e que, mesmo assim, consegue avaliar:
Estás mais gordo, estás mais magro com uma exactidão infalível. Passa connosco os jantares de quinta-feira em silêncio, o Pedro grita- The na orelha as poucas coisas que lhe dizemos, vive, sem uma queixa, numa solidão absoluta.
O que é que faz o dia todo?
Penso.
Às voltas com recordações, memórias. Uma ocasião, ainda o meu pai estava vivo, sentiu-se mal. Formaram-se duas brigadas de filhos, metade permaneceu em casa a acompanhar o meu pai, a outra metade partiu com ela para a Cuf. Sem uma queixa, exigiu, antes de partir, subir ao primeiro andar para se pôr mais bonita: maquilhou-se melhor, penteou-se melhor, apareceu com uma écharpe, um broche e um sorriso:
Até logo ou até ao outro mundo e, por acaso, foi até logo. Isto sem alarme, sem pânico, sem patetismo algum: absolutamente tranquila:
Até logo ou até ao outro mundo,
e que lição de dignidade vinda de uma pessoa que diz ter muito medo da morte.
António Lobo Antunes
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