20 de julho de 2024

Crónica (Lobo Antunes)


Moramos aqui, nesta casita ao pé da estação, com o canteiro de gerânios nas traseiras. Desde que os nossos pais morreram pensámos muitas vezes, a minha irmã e eu, em vendê-la e comprar um apartamento no centro, mesmo pequeno (nunca nos dariam dinheiro que se visse pela casa e as nossas reformas não são grande coisa) comprar um apartamento no centro para fugirmos aos comboios.

O caminho de ferro fica a cinquenta metros se tanto da saleta onde a seguir ao almoço a minha irmã faz crochet e eu me entretenho com os selos (para além da saleta temos dois quartos, a cozinha e a pia no quintal, num telheiro com um caco de espelho pendurado de um prego e as nossas escovas de dentes numa prateleirazita de ferro) e de cinco em cinco minutos tudo estremece com a passagem das locomotivas, colocamos o gato de gesso bem ao centro da mesa para que não tombe e se parta, empurramos as garrafas e os cálices para o fundo do aparador, deitamos as fotografias desde que no mês passado o vidro de uma moldura, ao quebrar-se, rasgou de lado a lado o sorriso do nosso pai num retrato de há trinta ou quarenta anos, no tempo em que a sua idade era a minha de agora e trabalhava no notário de Queluz. Lembro-me perfeitamente dele nessa época, pequeno, magrinho, com uma dúzia de cabelitos puxados da orelha esquerda a atravessarem a calva até à orelha direita, luzidios de fixador, pegados à pele do crânio com tamanha energia que nem sequer vibravam com o roldão das carruagens.

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