4 de setembro de 2024

A ESPOSA - (Vinícius)

A ESPOSA 


Às vezes, nessas noites frias e enevoadas 

Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos


Essa estranha visão de mulher calma 

Surgindo do vazio dos meus olhos parados 

Vem espiar minha imobilidade.


E ela fica horas longas, horas silenciosas

Somente movendo os olhos serenos no meu rosto 

Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.


Nada diz, nada pensa, apenas olha 

e o seu olhar é como a luz

De uma estrela velada pela bruma.


Nada diz. 

Olha apenas as minhas pálpebras que descem

Mas que não vencem o olhar perdido longe.


Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias 

Se sentir frias suas mãos.


Quando a porta ranger e a cabecinha de criança

Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo

Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios

Sorrindo de um sorriso misterioso


E se irá num passo leve 

Após o beijo leve e roçagante...


Eu só verei a porta 

que se vai fechando brandamente...


Ela terá ido, a esposa amiga, 

a esposa que eu nunca terei.


Vinicius de Moraes 

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