4 de junho de 2024

Inveja do Tarzan (crónica)

 


Carta aberta a Tarzan Taborda

"Sempre achei que a minha melhor qualidade era a ausência de inveja. Para ser inteiramente honesto confesso que é mentira: invejo-o a si. Invejo-o desde os 17 anos quando você entrou uma noite no baile dos Bombeiros Voluntários Lisbonenses onde eu ia aos sábados apanhar tampas de donzelas lavadas com sabonete Ach Brito, perfumadas com Madeiras do Oriente (caíam lascas dos sovacos) e repletas de lantejoulas no cabelo, sentadas ao lado das mães, sem me ligarem nenhuma, debaixo de grinaldas de papel.

Você chegou e as mães, em geral de luto e com o retrato do falecido ao peito num coração de esmalte, deixaram de se parecer com cães de porcelana Ming arreganharem-me o desprezo dos caninos para acotovelarem as filhas dissolvendo as mandíbulas ferozes numa admiração extasiada.

As lantejoulas do cabelo principiaram a brilhar de repente em cintilações roxas, azuis, verdes, castanhas, amarelas, as Madeiras do Oriente atingiram uma intensidade processional de incenso, as grinaldas de papel inclinaram-se na direcção da porta, a orquestra do maestro António Alvarinho, que era uma mistura de bigodes, trombones e smokings vermelhos, suspendeu respeitosamente o pasodoble, e você ali estava, no umbral, com uma poupa três vezes maior que a minha, uma camisa translúcida com flores de um género que os meus pais, não sei porquê, não consentiam que eu vestisse, uma pulseira e um anel que os meus pais, indiferentes às minhas súplicas, não deixavam que eu usasse. (os meus pais em matéria de toilette possuíam um gosto incompreensível) e mocassins bicudos, de verniz, que durante meses procurei às escondidas, em vão, nas sapatarias de Lisboa.

Você encostou-se em silêncio a uma parede, soberbamente alheio às donzelas que lhe pestanejavam convites agitadas nas cadeiras como galinhas no choco e às mães- viúvas prontas a recebê-lo debaixo da litografia de uma menina a chorar abraçada a uma boneca partida e a tomá-lo por genro entre calendários dos vinhos Camilo Alves, bambis cromados e ovais de crochet. Invejei-lhe o sucesso. Invejei-lhe o pasmo do bombeiro de serviço. Invejei-lhe a poupa, a camisa, a pulseira, o anel, os mocassins, o à-vontade e o desdém. invejei os cartazes que o mostravam de tronco nu a despachar com um estalo fácil o Médico Mongol e a tirar a máscara ao Urso da Caucásia.

Comparei no barbeiro as minhas patilhas com as suas e tive vergonha. Comparei as minhas meias de lã com as suas, prateadas, e apeteceu-me suicidar-me. Comparei no espelho da casa de banho os meus bíceps com os seus e senti-me um verme. Com resignado desgosto compreendi que o universo dos vinhos Camilo Alves e dos bambis cromados me estava irremediavelmente proibido. Detestei os meus pais por não me oferecerem um cachucho. E aceitei roído de ciúme um triste destino de escritor para evitar que o Urso da Caucásia me fizesse desmaiar com o simples sopro do seu hálito assassino.

Foram-me necessários muitos e trabalhosos anos para o esquecer. E julgava-me liberto de sentimentos mesquinhos quando há meses o ouvi na televisão desafiar qualquer homem para um concurso de dez modalidades, cinco escolhidas por si e cinco escolhidas pelo infeliz suficientemente louco para o desafiar.

Revi os Bombeiros Voluntários Lisbonenses e imensa, azeda, destruidora, a inveja voltou. Tentei uma lista de desportos em que pudesse ganhar-lhe, da maratona aos cinco cantinhos, do pentatlo moderno à Linda Falua, da equitação ao Burro-Em-Pé, do salto à vara ao Jogo do Galo. Não consegui: mal levantava os olhos do bloco encontrava, não o seu vulto, mas dúzias de retratos de falecidos em medalhões de esmalte que escarneciam das minhas camisas opacas e das minhas proezas atléticas. 

E entendi de uma ocasião por todas, a comer as unhas de raiva, que o país das Madeiras do Oriente me estava para sempre vedado. Você negou-me as maravilhas da Damaia de Cima e da póvoa de Santo Adrião. Proibiu-me o crochet. Impediu-me os hambis cromados Reduziu-me à Lapa. Amanhã de manhã começo a fazer quatro horas por dia de musculação. Talvez seja tarde mas pelo menos à Brandoa hei-de chegar."


António Lobo Antunes

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