8 de outubro de 2024

Minha mãe (crónica)

A minha mãe tem noventa e três anos, está cega, está surda, é um farrapinho que o menor sopro leva e, no entanto, lembra-se do peso com que os seis filhos nasceram, das peripécias de cada parto, dos primeiros dentes.

***

Um beijo como deve ser, se fazes favor e lá lhe pus, na bochecha, um beijo como deve ser. E tinha razão porque me limitara a roçar-lhe a testa com a boca. Várias vezes a ouvi perguntar aos meus irmãos

Não sabes dar um beijo como deve ser?

De pé, minúscula, mirando as sombras que agora somos para ela e que, mesmo assim, consegue avaliar:

Estás mais gordo, estás mais magro com uma exactidão infalível. Passa connosco os jantares de quinta-feira em silêncio, o Pedro grita- The na orelha as poucas coisas que lhe dizemos, vive, sem uma queixa, numa solidão absoluta.

O que é que faz o dia todo?

Penso.

Às voltas com recordações, memórias. Uma ocasião, ainda o meu pai estava vivo, sentiu-se mal. Formaram-se duas brigadas de filhos, metade permaneceu em casa a acompanhar o meu pai, a outra metade partiu com ela para a Cuf. Sem uma queixa, exigiu, antes de partir, subir ao primeiro andar para se pôr mais bonita: maquilhou-se melhor, penteou-se melhor, apareceu com uma écharpe, um broche e um sorriso:

Até logo ou até ao outro mundo e, por acaso, foi até logo. Isto sem alarme, sem pânico, sem patetismo algum: absolutamente tranquila:

Até logo ou até ao outro mundo,

e que lição de dignidade vinda de uma pessoa que diz ter muito medo da morte.


António Lobo Antunes 

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