13 de agosto de 2024

fingir que está tudo bem

 


fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido

com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro

do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir

que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde

os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas

não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão

desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós

olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver

sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de

medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto

dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:

ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:

amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.


José Luís Peixoto, in 'A Criança em Ruínas'

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