3 de agosto de 2024

Poema da malta das naus



***

Dormi no dorso das vagas, 

pasmei na orla das praias, 

arreneguei, roguei pragas, 

mordi peloiros e zagaias.


Chamusquei o pêlo hirsuto, 

tive o corpo em chagas vivas, 

estalaram-me a gengivas, 

apodreci de escorbuto.


Com a mão esquerda benzi-me, 

com a direita esganei.

Mil vezes no chão, bati-me, 

outras mil me levantei.


Meu riso de dentes podres 

ecoou nas sete partidas. 

Fundei cidades e vidas, 

rompi as arcas e os odres.


Tremi no escuro da selva, 

alambique de suores. 

Estendi na areia e na relva 

mulheres de todas as cores.


Moldei as chaves do mundo 

a que outros chamaram seu, 

mas quem mergulhou no fundo 

do sonho, esse, fui eu.


O meu sabor é diferente. 

Provo-me e saibo-me a sal. 

Não se nasce impunemente 

nas praias de Portugal."


António Gedeão 

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