30 de janeiro de 2024

Para ti (poema)












 Foi para ti 

que desfolhei a chuva 

para ti soltei o perfume da terra 

toquei no nada 

e para ti foi tudo 


Para ti criei todas as palavras 

e todas me faltaram 

no minuto em que talhei 

o sabor do sempre 


Para ti dei voz 

às minhas mãos 

abri os gomos do tempo 

assaltei o mundo 

e pensei que tudo estava em nós 

nesse doce engano 

de tudo sermos donos 

sem nada termos 

simplesmente porque era de noite 

e não dormíamos 

eu descia em teu peito 

para me procurar 

e antes que a escuridão 

nos cingisse a cintura 

ficávamos nos olhos 

vivendo de um só 

amando de uma só vida


Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas" 

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