BREVE MANIFESTO SOBRE A VIDA CONTEMPORÂNEA
OS NOVOS ALCOÓLICOS HOJE BEBEM PELOS OLHOS E PELOS OUVIDIOS. É UMA PANDEMIA DE CEGUEIRA, ENTRE OUTRAS MALEITAS QUE PULULAM DOS ECRÃS PARA AS EXISTÊNCIAS
Estamos divertidíssimos dos pés à nuca, do cerebelo aos pelos das axilas; estamos distraídos como bovinos, ruminamos como os animais de grande porte e quatro patas, e se a postura ficar bem no ecrã, se necessário, comemos erva da boa e da verde. No fim, tudo será pó, dizia a Biblía. No fim, tudo será imagem podemos dizer. Mas a grande diferença talvez seja esta: é difícil atrelar publicidade ao pó; o pó é, por natureza, material pouco disponível para qualquer acrescento mais sólido; a imagem, essa, tem costado suficiente para nele se afixar propaganda em circulação acelerada. No futuro, tudo será pó, imagem e publicidade. No presente, estamos vivos, até ver mas pouco, pouquito. No futuro, se alguém filmar o nosso cadáver, ou até a nossa poeira que pelos ares se distribua, talvez tais imagens atraiam alguma empresa em vias de expansão.
(Todas as empresas estão em vias de expansão, diga-se, se levarmos em conta a publicidade que delas é feita e talvez por isso o Universo, como um todo, esteja em expansão. Eis uma tese. A economia expande-se por cada cantinho da Terra e com isso expande o Universo. Este é o reino do Antropoceno: tudo o que o humano atira para o ar já não cai no chão, mas sim nas estrelas mais longinquas. A economia a interferir nas grandes leis da Física eis uma utopia/distopia possível. Já esteve mais longe, claro.)
Mas a questão principal é esta: até a tua morte pode vir a dar origem a umas belas imagens, ou seja, até a tua morte tem poténcia para ser um espaço de uns segundos de publicidade. Que produto será vendido com as imagens do teu velório? eis uma pergunta que vai ganhando importância.
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Os novos alcoólicos, hoje, bebem pelos olhos e pelos ouvidos, e por isso já não sabemos a quem devemos dar ombro e apoio: se aos ébrios de vinho que avançam aos solavancos em ameaça constante de queda, se às multidões de humanos nos restaurantes, nos transportes públicos, em casa imóveis, estáveis e curvados diante de um ecră. Precisa de apoio? deveríamos perguntar aos viciados curvados e imóveis, tal como perguntamos aos bébados das trés da manhã que cantam serenatas a postes de eletricidade fundidos e querem ir para casa pelo caminho direto de um muro compacto. É uma pandemia de cegueira, entre outras maleitas que pululam dos ecrãs para as existências. O mundo desapareceu, a não ser que seja filmado.
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Gonçalo M. Tavares
No Expresso
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