14 de maio de 2008

De Bichinhos



Eugénio de Andrade

Em Abril chegam os gatos:
à frente o mais antigo,
eu tinha dez anos ou nem isso,
um pequeno tigre
que nunca se habituou às areias do caixote,
mas foi quem primeiro
me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra,
uma gata que não parava em casa:
fornicava e paria no pinhal,
não lhe tive afeição que durasse,
nem ela a merecia, de tão puta.
Só muitos anos depois entrou em casa,
para ser senhora dela,
o pequeno persa azul.
A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida aberta
que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal na barriga.
É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos,
e partilhe a leitura do Público ao domingo.

2 comentários:

antónio paiva disse...

...

a palavra escrita por quem sabe, até parece fácil escrever.

na verdade é tão bom de ler.

(gosto de te saber revigorada)

...

Ana disse...

"saborear" é fácil mesmo.
Escrever, gerar, criar, parir palavras e textos é que não é fácil certamente.

É um pouco como os cozinhados - podem ser saboreados por todos, divinamente confeccionados, só por alguns.
Arte, só tem quem tem!