18 de novembro de 2024

ficará nos dicionários

 


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Humildade ficará nos dicionários como esqueleto em museu arqueológico.


Eu próprio nunca mais farei baixar as pálpebras

e deixarei que o sol me inunde bem nos olhos.


Um dia

(ah sinto-o bem para além das milhentas folhas de todos os tratados).

uma onda de amor invadirá tudo e todos.


E será uma primavera diferente de todas as primaveras

porque ainda não foram inventadas as palavras para dizê-la.

Simplesmente, nesse dia primeiro da nova criação, eu já terei partido.

A minha carne estará funda de mais para sentir o beliscão da alegria.

E os olhos cheios de terra

não verão os campos levantados

nem os campos eternamente floridos

nem a leiteira sem o seu ar de humildade.


Porém que importa?

Um dia, sei-o bem, todos estarão até que enfim de acordo.

Que importa a minha ausência?

Que importa que eu não venha a saborear os frutos da própria árvore?


Que é isso

ao pé da inabalável certeza 

desse dia admirável?


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Uma mulher quase nova


uma mulher quase nova 

com um vestido quase branco 

numa tarde quase clara 

com os olhos quase secos


vem e quase estende os dedos 

ao sonho quase possível 

quase fresca se liberta. 

do desespero quase morto


quase harmónica corrida 

enche o espaço quase alegre 

de cabelos quase soltos 

transparente quase solta


o riso quase bastante 

quase músculo florido 

deste instante quase novo 

quase vivo quase agora


Mário Dionísio

Mário Dionísio foi um crítico, escritor, pintor e professor português. Personalidade multifacetada, Mário Dionísio teve uma ação cívica e cultural marcante no século XX português, com particular incidência nos domínios literário e artístico.

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