31 de outubro de 2024
Infância. (poesia)
Coração preto gravado no muro amarelo.
A chuva fina pingando... pingando das árvores...
Um regador de bruços no canteiro.
Barquinhos de papel na água suja das sarjetas...
Baú de folha-de-flandres da avó no quarto de dormir.
Réstias de luz no capote preto do pai.
Maçã verde no prato.
Um peixe de azebre morrendo... morrendo, em
dezembro.
E a tarde exibindo os seus
Girassóis, aos bois.
Manuel de Barros
Florbela Espanca e Alentejo
Árvores do Alentejo
Horas mortas... Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!
E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!
Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!
Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!
Florbela Espanca,
in "Charneca em Flor"
Recorte de Imprensa
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É um facto que Portugal já tem 10% de população estrangeira e que isso representa enormes desafios para todos, a vários níveis. Regular as entradas, como o Governo está a tentar fazer, investir na integração, principalmente através das escolas e da educação, combater a exploração laboral e refutar qualquer narrativa de apontar os imigrantes como bodes expiatórios dos problemas do país, são os principais.
Valentina Marcelino
Diretora adjunta do Diário de Notícias
SERÃO (poesia)
Opiniões
No Observador
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Não devemos ter preconceitos e não devemos dar por certo quem errou neste caso, mas também não devemos conti- nuar a ser permissivos e permitir uma justiça popular que é sempre injusta. |
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É uma postura
Literalmente, não posso dizer que sou assim: já deixei a infância lá bem atrás.
Mas que sou doida por uma boa trincadela num chocolate, lá isso é verdade ! 🤭
Dentro do meu caderno
Dentro do meu caderno
há uma pena branca
de palavras e gestos cansados
de inocência a prazo ao longo do tempo.
Dentro do meu caderno
há mensagens desamparadas como os dedos verdes das estrelas
ora inquietas no mar incerto ora plácidas no mar sereno.
Sempre assim foi no meu caderno
de menino criador de silêncios nos desertos de um poema.
A beleza nua embriagada de mel
nasce dentro do meu caderno
sobre as águas de um mar de ouro do sol poente.
Do azul do mar fiz um barco pintado de sonhos
e na sua cama infinita perdi o respeito pelo silêncio do teu corpo.
Dentro do meu caderno
cai a chuva no cristal do pensamento
alheio aos nossos corpos e nossos mundos.
Dentro do meu caderno
Para que servem músicas se não sabemos cantar?
Caiam as folhas secas e nasçam flores brancas
onde a nudez se veste de palavras e gestos esgotados.
Ui, ui ...
Pouca importância dou às teorias dos signos do Zodíaco.
Dizem que os nascidos neste signo, homens ou mulheres, não são de fácil convívio.
Por acaso conheço pessoas deste signo e reconheço-as como muito exigentes, com os outros e consigo mesmas.
E mais não sei, e mais não digo... 😔
não sujar o ar lavado
Embrenhei-me campos fora, sacudindo a lama
Com jeito para não sujar o ar lavado.
No coração levo as fotografias retiradas do pó
Que cobre as coisas preciosas:
Dos amores em que o poema nasce e se eterniza,
Dos amigos que são a verticalidade de um mundo apodrecido,
De tudo o que faz deste caminho o meu caminho
Desde que nada sirva de desculpa para não caminhar...
Nem vento nem chuva, nem calor nem frio... nada!...
Pois, como dizem os velhos lavradores deste chão:
"O tempo espera-se no monte".
Manuel Maria Figueira
"Raízes Invisiveis"
30 de outubro de 2024
Live fast (viver depressa)
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Live fast
Die young
Be wild
And have fun
I believe in the country America used to be
I believe in the person I want to become
I believe in the freedom of the open road
And my motto is the same as ever
I believe in the kindness of strangers
And when I'm at war with myself
I ride, I just ride
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O meu desejo pessoal é o oposto: anseio por uma vida tranquila e longa.
Há casamento infantil
Em Portugal há casamento infantil.
Tristíssimo
e talvez aconteça mais do que o que se consegue descobrir.
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Casar na infância
O número não é brutal, o tema é dramático: mais de cem crianças, com idades compreendidas entre os 10 e os 14 anos, casaram-se em Portugal desde 2015. Outro número: nesse mesmo período, contabilizaram-se 836 matrimónios que envolveram menores de idade, em que meninas e raparigas foram as maiores vítimas. Uma ressalva: estes números poderão não chegar para explicar esta realidade na nossa sociedade. Porquê? Há algumas causas em estudo, mas “os principais incentivadores são os pais”.
Pedro Candeias ☝☝
Expresso Diário//31 Outubro
Nós, poetas
Nós, poetas e amantes
o que sabemos do amor?
Temos o espanto na retina
diante da morte e da beleza.
Somos humanos e frágeis
mas antes de tudo, sós.
Somos inimigos.
Inimigos com muralhas
de sombra sobre os ombros.
E sonhamos. Às vezes
damos as mãos àqueles
que estão chorando.
(os que nunca choraram por nós)
Ah, meus irmãos e irmãs...
Ai daqueles que nos amam
e que por amor de nós se perdem.
Ah, pudéssemos amar um homem
ou uma mulher ou uma coisa...
Mas diante de nós, o tempo
se consome, desaparece e não para.
Ouvi: que vossos olhos se inundem
de pranto e água de todo o mundo!
Somos humanos e frágeis
mas antes de tudo, sós.
Hilda Hilst,
"XX" (Balada do festival)
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"XV"
Haverá sempre o medo
e o escondido pranto
no meu canto de amor.
Dos homens e da morte
mais noite que auroras
em verso e pensamento
concebi. Nas crianças
amei os olhos e o riso
o clamor sem ouvido
o medo, o medo,
Se a fantasia
aproximar de mim
a tua presença,
fica. A teu lado,
serei amante sem desejo:
Pássaro sem asa.
Submerso leito.
Hilda Hilst,
in Balada do Festival
Campanha eleitoral
A minha visão em simbologia: isto parece menos uma campanha política e mais um Duelo ao Sol.
Ideologia referente ao social, económico e relações externas, pouco explícita.
Adjectivos de desconsideração pelo adversário, frequentes.
Adjectivos em relação a imigrantes, cruéis.
Em resumo, a campanha não me é destinada, mas não aprecio o que vejo e oiço.
Opiniões
No Observador
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Uma presença (poesia)
És uma presença. Constante.
Como o fantasma bom que me guarda a casa;
um sorriso solto, um beijo calado, ponto de luz
para os olhos cansados de quem viaja.
És uma presença. Constante.
Como o que diziam do anjo da guarda;
um olhar que não procuro, mas, sei.
Jamais alguém tocará a minha Alma
com amor semelhante.
Margarida Faro, in 44 Poemas
Minha gata (crónica)
Meu amor querido
Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinezinha minha Paulina Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu Setembro de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Passargada meu templo grego minha colina meu verso de Holderlin meu gerânio meus olhos grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada
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minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha harpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para o mar meu mangerico meu cravo de papel minha Madragoa minha morte de amor minha Ana Karénine minha lâmpada de aladino minha mulher
António Lobo Antunes
in 'Cartas da Guerra (17 Abr 1971')
29 de outubro de 2024
Espuma (poesia)
Não se chega por trás ao infinito
nem pela frente ou pelos lados mas por onde
nenhum nome pode ser dito ou escrito
e ninguém sabe ao certo o que se esconde.
Não pela palavra Nada (a tão terrível)
nem pela palavra Tudo (a tão perigosa)
mas aquém do visível e do dizível
ou da palavra rosa antes de ser rosa.
Ou talvez onde um vento ignoto sopre
entre a pedra e o vitral o dentro e o fora
lá onde cheira a incenso e cheira a enxofre
e Deus não cabe na palavra agora.
Entre aquém e além ser e não ser
tantas portas abertas ou talvez nenhuma.
Não há senão um verso por escrever
e sobre a areia branca a breve espuma.
Manuel Alegre
Doze Naus. Lisboa: Dom Quixote.
Coração Habitado
Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui: frescos,
matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.
Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas nas minhas,
as pequenas mãos do mundo.
Alguns pensam que são as mãos de deus
eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água, a tristeza
e as quatro estações penetram, indiferentemente.
Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.
Eugénio de Andrade
Em "Até Amanhã"
E daí ?
Direito à ousadia da diferença
A expressão "e daí" é uma forma de demonstrar indiferença em relação a algo. É uma resposta irónica ou sarcástica utilizada para minimizar a importância de um assunto considerado pouco significativo.
Ergo uma rosa
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Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.
Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me dói de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros.
José Saramago
Desistência
Deixo-me assolar por medos, desassossegos,
silêncios velhos, perguntas sem resposta;
tenho anseios de voo
e uma tontura, um enjoo,
que me prende ao chão e trava.
Nada me diverte ou me dispersa.
Nem esta espécie de força, a dizer-se gasta,
que me sustenta;
nem esta imitação de troça estéril,
em nós de água na garganta,
que, num esmagamento pesado, certo,
me fere, me entontece e arrasta;
nem este desalento surdo, feito uma pasta,
colado, virado contra mim, que me alimenta.
Que é feito desse animal, ferido de morte,
que me escoiceava, em cegueiras de justiça?
Espectadora de mim, a desfazer-me, já não sei
se o que mais dói é estar dormente.
Esboço o sorriso idiota de quem não pensa,
a atitude de quem não mais se interessa,
que nova batalha perdida é indiferente,
tudo é tão mau quanto foi noutra qualquer altura,
solto um suspiro, engulo em seco, aperto a boca
e sento-me para trás em desistência.
Lisboa, 28, Julho, 1980
Margarida Faro
Opiniões
No Observador
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