4 de outubro de 2024

De Lobo Antunes


Com os anos a morte vai-se tornando familiar. Quero dizer não a ideia da morte, não o medo da morte: a realidade dela.

As pessoas de quem gostamos e partiram amputam-nos cruelmente de partes vivas nossas, e a sua falta obriga-nos a coxear por dentro.

Parece que sobrevivemos não aos outros mas a nós mesmos, e observamos o nosso passado como uma coisa alheia: os episódios dissolvem-se a pouco e pouco, as memórias esbatem-se, o que fomos não nos diz respeito, o que somos estreita- se.

A amplitude do futuro de outrora resume-se a um presente acanhado.

Se abrirmos a porta da rua o que se encontra é um muro.

No nosso sangue existem mais ausências do que glóbulos.

Tento recordar-me: a casa dos meus avós, a Praia das Maçãs, episódios antigos, as horas gordas do relógio de parede ecoando na sala.

Deve ser tudo normal, certamente é tudo normal e não entendo. Venderam a quinta, o mundo encheu-se de pessoas.

Fomos tão poucos, dantes!

Escondia-me num canteiro a fumar, as nuvens passavam sobre as copas.

As flores nasciam, perfeitas, dos dedos do senhor José. Esqueceste-te das estátuas com o nome das estações, do roseiral?

Do mês de junho em que tudo era verde, nítido, claro?

De trazeres pilhas de livros para o jardim?

Que António eras tu?


A. LOBO ANTUNES 

1 comentário:

sonia disse...

Lindo texto. Diz o que eu gostaria de dizer, faz-me sentir que houve grandes mudanças em todos os aspectos!